quinta-feira, 30 de julho de 2009

Enem 2009

Como professor de língua portuguesa, jornalista e profissional da área de educação, fiquei perplexo diante das questões da área de “Linguagens, códigos e suas tecnologias” no simulado do Enem que o MEC divulgou hoje. Perplexo, antes de mais nada, porque se prometeram tantas mudanças em relação às provas anteriores, que eu efetivamente esperava por algo novo. No que se refere à área de comunicação e expressão (para usar uma terminologia antiga, mas menos pretensiosa), não há nenhuma novidade, afirmação que se comprova com uma simples comparação entre as dez questões ora apresentadas como modelo e as questões da mesma área dos anos anteriores.

Isso, porém, está longe de ser o maior problema do “novo” Enem. Entre os vários pontos que poderiam ser criticados no modelo fornecido, o que me parece mais grave é o jargão pretensamente científico com que se redigem as questões. Essa linguagem rebuscada só serve para confundir o estudante e afastar sua atenção daquilo que realmente deveria observar, caso queira aprimorar o uso que ele já faz, bem ou mal, da norma culta do português contemporâneo. Uma análise detalhada do enunciado da primeira questão deve deixar bem claro o que quero dizer.

A prova se abre com a transcrição de um trecho da carta de uma leitora da revista Veja. Segue-se o enunciado da questão propriamente dito, que começa assim: “Em uma sociedade letrada como a nossa, são construídos textos diversos para dar conta das necessidades cotidianas de comunicação”. De imediato, me parece incorreto o uso do vocábulo “letrada” – cujo significado precípuo é “culta”, “erudita” – para designar nossa sociedade, mas logo descubro que, especificamente em pedagogia, “letrado” significa “que ou aquele que é capaz de usar diferentes tipos de material escrito”.

Não acredito que os estudantes do ensino médio tenham domínio do vocabulário da Pedagogia, mas passo ao próximo ponto, ainda no mesmo enunciado, que, embora tão pomposo, me parece querer dizer somente o seguinte: “Em nossa sociedade, as pessoas também se comunicam por escrito”. Creio que esta forma pouparia um bom tempo de reflexão ao coitado do examinando, o que lhe possibilitaria ir direto ao objetivo da questão, isto é, o reconhecimento da diversidade dos gêneros textuais.

A segunda afirmação do enunciado (“Assim, para utilizar-se de algum gênero textual, é preciso que conheçamos os seus elementos”) é bastante discutível. Para começar, o “assim” – que parece utilizado no sentido de “consequentemente” – é por completo dispensável, pois não há relação de consequencia entre esta frase e a anterior. Segundo, a afirmação não é rigorosamente verdadeira, já que qualquer pessoa pode se utilizar da linguagem (falada ou escrita) independentemente de conhecer linguística e gramática, ou mesmo quaisquer categorias ou preceitos dessas disciplinas.

Segue-se a asserção “A carta de leitor é um gênero textual que”, a ser completada por uma das afirmativas abaixo dela. Trata-se de uma asserção mal formulada, pois o que pode ser chamado de gênero textual é a carta de um modo geral, não a carta de leitor. A carta, em termos amplos, constitui a essência do chamado gênero epistolar. Carta de leitor não chega a ser gênero, mas, no máximo, uma variedade ou subgênero do gênero epistolar.

Parece desnecessário seguir adiante e averiguar as verdadeiras pérolas do semiotiquês que perfazem as possibilidades de resposta a uma questão tão mal formulada. O que se falou aqui é suficiente para concluir que, se os estudantes gastam seu tempo na escola a digerir conteúdos de tão “elevada profundidade”, não é de maneira alguma de espantar que eles já não sejam profícuos na velha e boa arte de escrever cartas.

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